domingo, 15 de fevereiro de 2009

Arte Marcial: Esporte e Filosofia


Em entrevista, Marcos Serra, mestre do Instituto de Kung Fu Shaolin, fala um pouco sobre a verdadeira essência da arte marcial. Quebrando preconceitos, que ainda existem, ele afirma que as artes marciais em geral não representam sinônimo de violência e agressividade. Surgido na China, o kung fu é uma das práticas de luta mais antigas, não se conhecendo ao certo a data de seu surgimento. Sabe-se que nasceu da imitação de animais por meio da qual se fazem as posições e os movimentos na luta. Existem mais de mil estilos conhecidos e mais de 400 catalogados, cada qual com suas características específicas. Segundo o sifu, como são chamados os mestres do kung fu, a arte marcial é muito mais do que uma luta, é também uma busca pelo auto-conhecimento e controle total sobre o corpo, o que requer extrema disciplina. A condição de sifu só é atingida quando todos os elementos da vida do praticante estiverem em equilíbrio. Confira a seguir a entrevista na íntegra:


1) Com quantos anos você começou a treinar Kung Fu?

Comecei a treinar caratê de dez para onze anos, depois de dois anos conheci o kung fu e foi paixão a primeira vista. A princípio eu era só um praticante. Com 15 anos surgiu a oportunidade de dar aulas como instrutor auxiliar. A partir de então me profissionalizei e em 1992, juntamente com o Sifu De Paula e o Sifu Gabriel, fundei a escola Instituto de Kung Fu Shaolin, que mais tarde se tornou Tat Wong Kung Fu Academy. Depois de alguns anos o Sifu Gabriel se afastou da academia e agora, este ano, houve uma separação entre mim e o Sifu De Paula, devido a algumas divergências ideológicas. O Sifu De Paula abriu uma nova Tat Wong e eu voltei com o Instituto de Kung Fu Shaolin

2) A partir de quantos anos é possível começar a praticar?

Com quatro ou cinco anos já é possível. Mas a escola deve ter uma estrutura especial para isso. Deve ter uma didática para lidar com crianças, pois elas devem ser muito bem direcionadas. A nossa escola é conhecida por ser uma das escolas especializadas também em treinamento de crianças. É preciso que os pais se certifiquem de que a escola está pronta para lidar com isso.

3) O que o levou a se interessar por essa arte marcial?

Eu particularmente sempre tive uma vida muito direcionada para a atividade física. Antes do caratê eu já havia feito dois anos de ginástica olímpica. As artes marciais chinesas estavam no auge aqui no Brasil, devido a um filme e um seriado que faziam sucesso na época. Um deles era “Operação Dragão”, do Bruce Lee, que foi o grande responsável por fazer o kung fu ficar conhecido no mundo. O outro era um seriado, que passava semanalmente, chamado “Kung Fu”, que marcou a década de 70. Na minha infância, inclusive, houve uma época em que a moda era brincar de luta marcial. Nós não sabíamos nada, mas brincávamos como se soubéssemos lutar. Quem me encaminhou para arte marcial, em um primeiro momento, foi meu pai. Ele chegou em casa com um quimono de caratê, achei até que fosse brincadeira. Mais tarde meus avós passaram a me apoiar, mas ninguém imaginava que eu ia me tornar um profissional nessa arte marcial.

4) Para você, o kung fu deve ser visto como uma luta/esporte ou uma filosofia de vida?

Na verdade foi essa divergência de opinião que fez com que eu me separasse do Sifu De Estão indo para um lado desportivo, o que ajuda de certa forma na divulgação. No entanto perde-se na essência, pois se começa a incentivar muito a competição. Em uma competição o que se prioriza é o resultado. Quando se fala na competição esportiva o atleta desse nível é um atleta de alto rendimento, é um atleta que está sempre entre a saúde e o limite do corpo, o que pode se transformar em uma doença ou uma lesão grave. O kung fu prega justamente o contrário. Ele nasceu com o objetivo de trazer uma qualidade de vida para o ser humano. Porém não uma qualidade de vida que a nossa sociedade procura atualmente, que a qualidade de vida do ter, dos bens. A arte marcial tem como objetivo o conhecimento da essência do ser humano, do ser. Na prática marcial a qualidade de vida é a questão do equilíbrio físico, mental e espiritual. Portanto a luta não deve ser considerada um esporte. Pode-se até ser vista como uma atividade corporal. Mas é principalmente uma filosofia que leva ao auto-conhecimento. É uma forma de viver.

5) O que você acharia se o kung fu entrasse para as Olimpíadas?

Já há um projeto. A China está fazendo um campeonato mundial paralelo às Olimpíadas, que irá acontecer lá. A abertura vai ser completamente baseada no visual de arte marcial chinesa, com o intuito de mostrar para o mundo o que é ela. Porém transformaram essa arte milenar, que possui mais de 400 estilos diferentes – cada qual levando mais ou menos de 20 a 30 anos para se desenvolver – em competição. Criaram nove rotinas de coreografias para que o mundo inteiro possa competir com elas. Terá também a parte da luta que, por ser desportiva, é carregada de regras. No verdadeiro kung fu, contudo, não há regras. Isso limita o ser humano. A arte marcial tenta quebrar conceitos. A luta é só um percurso para o auto-conhecimento. Não se trata de uma questão de perder ou ganhar. A participação do kung fu nas Olimpíadas faz perder a verdadeira essência da arte.

6) Você acha que o kung fu pode ajudar a diminuir a agressividade nas pessoas?

O kung fu é uma superação, é uma busca interna para que se possam controlar as emoções. A arte marcial é como uma terapia. Primeiro vem técnica, o domínio físico, que muitos pensam ser a parte mais difícil mas, que na verdade, é a mais fácil. Depois do domínio físico entra o domínio mental e, depois, o espiritual. Portanto, quando o praticante tem o total domínio dos três fatores, ele pode ser chamado de um mestre da arte marcial. O kung fu é um treinamento para se chegar a esse estágio e, consequentemente, diminui, sim, a agressividade. Um dos meios de preparar a mente no kung fu é fazer com que você aproveite o aqui e agora. Você não pode estar com a cabeça em outro lugar, pensando em outras coisas. É um processo de concentração. Isso é uma coisa que afeta muito a nossa sociedade nos dias de hoje. Principalmente o estresse, que é o apego exagerado ao futuro e a depressão, que é o apego ao passado. O kung fu prega o carpe diem e o auto-domínio, não agressividade. Não existe agressividade na arte marcial. A princípio não é o intuito, a não ser que a luta perca sua essência, como no caso da desportiva, por exemplo. Uma pessoa agressiva, que começa a treinar, tem duas possibilidades: uma delas é passar por uma grande transformação, a segunda é perceber que aquilo não serve para ela. Porém, infelizmente, esse tipo de pessoa vai encontrar escolas que prezam somente a luta e tudo o que é desenvolvido no treino é refletido na vida.

7) Como um praticante de kung fu lida com casos de violência na rua?

O praticante evita a violência ao máximo. Se fizermos uma estatística, o último que você verá brigando na rua ou no trânsito será um praticante de lutas marciais. Isso no caso do verdadeiro praticante, não do esportista. Se for possível virar as costas e sair andando é justamente isso que ele irá fazer. No entanto se não houver escolha, o artista marcial tem condições para se defender. Nenhum ser humano tem o direito de agredir ou tirar a vida de outra pessoa. Na arte marcial é possível usar a própria força do agressor contra ele mesmo. É preciso ter controle mental nessas horas, para ter capacidade para manter a calma e agir com cautela.

8) Já aconteceu algum caso com você?

Sim, já fui assaltado a mão armada três vezes. Deve-se saber lidar com a situação. Nunca se deve reagir. O melhor é dar a carteira ou o que for com muita tranqüilidade, pois isso pode custar a nossa vida. É preciso ter um controle sobre seu corpo e sobre a situação.

9) Como está a disseminação do kung fu no Brasil em relação aos outros países ocidentais?

As artes marciais brasileiras são muito respeitadas no mundo inteiro. São os esportes nas olimpíadas que mais trazem medalhas para o Brasil. Como o judô, o jiu jitsu, o caratê, o tae kwon do, etc. Em outros campeonatos, em se tratando da luta tradicional, o kung fu está entre os quatro melhores do mundo e é muito respeitado.


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